Tribunal das artes incorretas: "aqui ninguém os aguenta mais"
"Eu não queria jogar confete, mas tenho que dizer Ce tá de lascar, cê tá de doer.”
Caríssimos e caríssimas, a música Com Açúcar e Com Afeto foi escrita a pedido de uma mulher cujo último adjetivo que lhe cabe é submissa. Ao contrário, uma mulher nascida no ano de 1942, que, ao perceber a realidade de subordinação ao qual sua mãe, Dona Tinoca, era submetida, via que não era aquela vida que desejava para si. Evidente que esta postura advém também do contexto político e cultural no qual estava inserida, juventude dos anos sessenta e setenta. Essa mulher era Nara Leão.
“Que dona Tinoca continuasse sendo a Amélia de Jairo Leão – pai de Nara. Nara seguiria o caminho inverso do escolhido pela mãe, o da liberdade e da independência – ela estaria de braços abertos para o namorado e quase marido, mas não admitiria nenhum arroubo machista de Cacá Diegues.” (pág. 108)
Nara, ao perceber que, muitas das músicas que vinham sendo compostas colocavam a mulher quase alienada de sua posição, pediu a Chico Buarque que escrevesse uma letra na qual a mulher tivesse absoluta consciência da condição que lhe era imposta. Daí nasceu a deliciosa canção: Com açúcar, com afeto.
“Nara queria uma canção que assumisse uma posição feminina, narrada por uma mulher. E que não fosse a Amélia de Ataulfo Alves e Mario Lago (autores do samba 'Ai que saudade da Amélia', lançado em 1942), aquela que não tinha a menor vaidade e, se preciso, passava fome ao lado do marido."
Essa dona de casa idealizada por Nara deveria, ao menos, ter consciência de suas privações e não aceitar prazerosamente o papel da submissa e resignada. Chico entendeu o recado e compôs “Com açúcar, com afeto”. (Ninguém pode com Nara Leão, uma biografia. Tom Cardoso, pág. 107).
Já no ano de 1975, imortalizada na voz de Maria Bethânia, Chico lança a música Sem Açúcar que, de maneira muito mais incisiva, traz a fala de uma mulher que evidentemente opta – e com absoluta consciência dos prejuízos que isso lhe acarreta – vivenciar uma relação insana. Ora, caro leitor e leitora, salta aos olhos que a canção não é uma propaganda e quiçá uma apologia a esse modelo de vinculo abusivo, machista e insalubre, mas sim, um retrato cru da realidade que ocorre nas complexas relações humanas. A arte, se é que possui algumas finalidades para além de ter o fim em si, essa certamente é uma delas: retratar com cuidados estéticos fatos da vida sem julgamento moral e despida da imposição do correto e do equivocado a ser feito.
Por essas e outras que recusar-se a ouvir, cantar ou até mesmo conhecer músicas como Amélia, leva ao imenso desperdício cultural e a uma negação quase infantil de como as relações amorosas eram e algumas são. Ouvir e, até mesmo, admirar esteticamente, não significa em momento algum aplaudir a esse modelo de vínculo. Assim como, cantá-la está a anos luz de incentivar alguém a agir dessa forma ou de outra. Os que fazem isso são autores de livros de autoajuda.
Aliás, a saudosa Elza Soares, dentre tantos legados marcantes para a música no Brasil, nos presenteou com mais esse ensinamento: que a música não deve ser censurada por retratar cruezas da realidade! Ao contrário, devem ser cantadas, inclusive pelo oprimido, pois, assim, descortinam-se os fatos, traz à tona o que realmente ocorre nesse país tão cordial e democrático. Não há nada pior do que fingir que o racismo não existe, que o machismo não era, e não é, bem assim; que homofobia já passou etc. Elza, não se curvando ao politicamente correto, fez questão de cantar músicas como “Vai ter que rebolar”, “O Neguinho e a Senhorita”, “Mulata Assanhada” dentre outras maravilhas da música popular brasileira que, despidas de qualquer hipocrisia mostram a cara do Brasil. Claro, sempre com a beleza que a música exige. Espero que nunca tenham a ousadia de difamar Elza por emprestar sua voz a essas canções. Se a acusarem de racismo, aí sim será o fim do mundo.
Mas, para além disso, a arte também pode funcionar, não como uma manifestação do que ocorre, mas como uma clara denúncia, vide Mulheres de Atenas. Esta que, muito mal interpretada, aliás, erroneamente interpretada, pela lente rasa da literalidade, fora acusada de machista. Aqueles, aquelas que lhe apontavam o dedo não perceberam a gritante e evidente ironia que contém nos versos da bela canção
“Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Sofrem pros seus maridos, poder e força de Atenas Quando eles embarcam, soldados Elas tecem longos bordados Mil quarentenas E quando eles voltam sedentos Querem arrancar, violentos Carícias plenas, obscenas.”
Além disso, os promotores do sagrado tribunal das artes incorretas, não entenderam que “mirem-se”, no exemplo, traz o sentido de mirar para um espelho, onde se enxerga o inverso.
Enfim, como dizia nosso querido Jobim, que essa semana teria completado mais uma primavera, no Brasil nós temos as melhores músicas do mundo e escutamos as piores. Que triste! O maior temor é que, para além de ignorar as melhores e ultra valorar as mais benéficas à indústria musical, caiamos no obscurantismo de censurar o que temos de material cultural nesse país.
Meu, quem dera, caro amigo Chico, você não se curvou nem à censura da Ditadura Militar que lhe ameaçou a vida. Pela riqueza cultural que você alimentou nesse país, peço, não se curve a ataques ignorantes daqueles que desejam o fim do patrimônio cultural brasileiro.
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