A desculpa que faltava para gostar de Tiago Iorc...
Muito além do óbvio, Tiago Iorc surpreende com letra sobre masculinidade frágil.
Muito louco, ainda não acredito que esse será o assunto da minha semana, mas será.
Apesar de eu ser um colunista que fala economia, eu sou um apaixonado por artes, não artes clássicas, artes acessíveis, música, teatro, cinema, dança e tudo que envolva as pessoas em uma vibração de conscientização, confraternização e outras coisas boas. É pela arte que eu fujo do amargor de conhecer e entender a pornografia econômica que manda e desmanda nos rumos do país.
Apesar de um apreciador, eu não tenho, ou ainda não descobri meu dom artístico, mas dizem que Deus dá o frio conforme o cobertor e nesse sentido meu cobertor é parrudo. Tendo dezenas de amigos com aspirações artísticas, alguns muito talentosos mas perdidos em outras funções sociais para poderem sobreviverem com dignidade, enquanto outros com melhor sorte conseguem seguir produzindo e reproduzindo sua arte por aí.
Foi então que um desses amigos, o ator Dionísio Neto, compartilhou um vídeo do Tiago Iorc. Bom, achei que fosse algo para rir, nós temos uma confluência humorística pautada nas amenidades da vida, mas para minha surpresa... Tiago Iorc estava careca — em nosso mais recente encontro brincamos sobre o fato de eu parecer o Tiago Iorc e óbvio que era brincadeira, Tiago Iorc é um cara lindo e eu sou um cara, digamos, mais rústico, mas o elástico de cabelo era meio parecido mesmo.
O que um leigo como eu sabia até então sobre Tiago Iorc? O típico galã de malhação, multitalentoso, afinado, parece que toca bem um violão e deve ser o rei do luau. As músicas são meio românticas, mas romance sem tantã não faz bater meu coração, enfim, não ouvia. Mas esqueçamos o óbvio, Tiago Iorc não tem mais cabelão, resolveu copiar o penteado que eu usava antes da pandemia, está careca. Sem cabelo, sem violão, nem banquinho. No clipe nenhum sinal de mulher e o estilo de galã de malhação? Bom, galã sim, da malhação eu discordo. O cara está derramando talento, sem menosprezar a novelinha que entreteve minha vida jovem, parece que o talento dele não caberia mais no folhetim “das cinco”... Tiago transbordou.
O clipe é minimalista, um estúdio branco, Tiago Iorc e uma câmera muito envolvida no que estava filmando. Como adiantei, o cantor aparece sem o famoso cabelão, ou coque samurai. Seu figurino também é curioso, expõe todo seu tronco sem camisa e compõe a fotografia sua calça boca de sino vermelha. É um clipe extremamente conceitual, encantador!
A música ainda segue seu estilo, mas não os temas comuns, não é uma baladinha de Amor, o tema é autoconhecimento, soa como um desabafo, um soco no estômago que começa com uma reflexão que parece jogar luz sobre seu recente sumiço da mídia após a explosão de fama que o envolveu:
“Eu tava numa de ficar sumido Dinheiro, fama, tudo resolvido Fingi que não , mas na verdade eu ligo”...
Eu é que estou escrevendo e tem dinheiro no trecho acima, mas como eu disse no começo da coluna, esqueça o óbvio, não é sobre isso...
Quando a música começa, o clipe começa a revelar Tiago ajoelhado, encolhido, indefeso, com os braços protegendo seu rosto.
Depois a música começa a colocar umas batidas sobre aquele vocal mixado, o ritmo não me é estranho, acho que tem uma coisa do TRAP que tanto se ouve hoje — mas que ainda não conheço muito bem então é mais uma impressão. Durante a música, o ritmo e a melodia trocam de formas, misturam Tiago cantando com uma voz sintetizada de forma mais melódica, alternando com alguns trechos em que Tiago declama uma verdadeira poesia que é a letra da música, enquanto interage com toda a narração em seus movimentos e gestos.
A performance do cantor no clipe é uma obra à parte. Longe do clichê de closes no rosto de olhos fechados desejando amor, nesse novo trabalho Tiago Iorc se exibe por completo em uma ótima coreografia, assinada por Ariany Dâmaso e muito bem executada pelo próprio cantor. Apreciadores de dança, gostarão de ver um ícone jovem mostrando que podemos soltar nossos corpos e nos expressar de maneiras não tão óbvias.
Meu hábito de observação mercadológica das coisas, me fez até pensar que poderia ser uma jogada de marketing para o mundo Tik Toker que vivemos e o quadro estreito do clipe também sugere isso, mas a letra da música é muito boa, parece que ali tem “conteúdo demais” para caber no show de vazios que acontece no Tik Tok. Esse trabalho de Iorc é para ver em tela grande, quanto maior melhor, é clipe para reproduzir em fachadas de prédios, não em minitelas de “miniversos”.
Apesar de simples, o clipe é grande e elaborado, o cantor dança com a câmera em uma harmonia muito sincronizada, fazendo poses, movimentos, gestos e expressões faciais em um estrondoso plano sequência (sem cortes) de 6 minutos. Algo que deve ter dado um super trabalho de coreografia, direção e muito ensaio, mas que resultou em uma tela preenchida pelo elemento de cena, o próprio Tiago. Talvez seja esse o motivo do quadro mais estreito, uma forma de evidenciar e preencher a tela com o cantor.
Apesar de tudo isso, o ponto alto desse novo trabalho e motivo que me trouxe a escrever sobre isso e não sobre o maravilhoso momento econômico que vivemos (contém ironia), foi exatamente a letra, o ponto alto da letra que como sugere o título “masculinidade” é a desconstrução do homem macho, e a reflexão sobre a masculinidade tóxica.
“Eu cuido pra não ser muito sensível Homem não chora, homem isso e aquilo Aprendi a ser indestrutível Eu não sou real”
Acho que a letra tem profundidade, tem verdade e desabafo. Tiago Iorc deve sofrer com o machismo, infelizmente, na nossa cultura homofóbica, o ser homossexual é considerado um xingamento e usado para reprimir pessoas que independente de sua sexualidade predominante, deseje ter comportamentos, erroneamente associados a um gênero específico, como a vaidade ou a sensibilidade, geralmente associadas às mulheres. A letra continua:
“Quando criança, era chamado de bicha Como se fosse um xingamento Que coisa mais esquisita Aprendi que era errado ser sensível Quanta inocência Eu tive medo do meu feminino Eu me tornei um homem reprimido Meio sem alma, meio adormecido Um ato fálico, autodestrutivo No auge e me sentindo deprimido Me vi traindo por ter me traído Eu fui covarde, eu fui abusivo Pensei ser forte, mas eu só fugi...”
Uma das coisas que aprendi ao apreciar a arte, é a não cair na cilada de considerar que a obra de um artista carrega em si uma espécie de autobiografia. Logo, não há como definir exatamente o que o cantor quis dizer, sem conhece-lo intimamente e seria uma tolice fazer questão de saber o quão autobiográfico isso é, porque, ao contrário da economia, a arte cresce com a especulação, na arte o pensamento não é tão fechado e dá margens para aplicarmos, replicarmos e refletirmos sobre as diversas possibilidades que se encaixariam nessa letra. Mas, desde a ausência daquele cabelão que ele tinha, passando pelo minimalismo do clipe e a abstração da coreografia, a mensagem é clara, a obra “masculinidade” fala sobre aprendizado, descobertas, desconstrução e, porque não, reconstrução.
Corajoso e feliz em sua mensagem, Tiago Iorc entrou em temas espinhosos e cercados de tabus, como sexualidade, violência, masculinidade frágil e vício em pornografia.
...E caí na pornografia Essa porra só vicia Te suga a alma, te esvazia E quando vê passou o dia E você pensa que devia Ter outro corpo, outra pica A ansiedade vem e fica Caralho! Isso não é vida!
De tempos em tempos entra o refrão, que vale por uma música toda:
Cuida, meu irmão Do teu emocional Cuida do que é real Cuida, meu irmão Do teu emocional Cuida do que é real
Um cara talentoso que fugiu do óbvio, se tornou surpreendente, pode ser bom observar o que vem pela frente. Essa letra profunda e cheia de desconstruções e reconstruções faz lembrar Lulu Santos que compõe suas músicas tão profundas quanto diversas sessões de terapia.
Vou parar por aqui, porque melhor do que eu explicar, é você ouvir, ou ler. Segue abaixo o clipe e a letra:
Masculinidade
(Tiago Iorc, Mateus Asato, Lux Ferreira e Tomás Tróia)
“Eu tava numa de ficar sumido
Dinheiro, fama, tudo resolvido
Fingi que não , mas na verdade eu ligo
Eu me achava mó legal
Queria ser uma unanimidade
Eu quis provar minha virilidade
Eu duvidei da minha validade
Na insanidade virtual
Eu cuido pra não ser muito sensível
Homem não chora, homem isso e aquilo
Aprendi a ser indestrutível
Eu não sou real
Conversando com os meus amigos
Eu entendi que não é só comigo
Calar fragilidade é castigo
Eu sou real
Cuida, meu irmão
Do teu emocional
Cuida do que é real
Cuida, meu irmão
Do teu emocional
Cuida do que é real
Masculinidade frágil, coisa de menino
Eu fui profano e sexo é divino
Da minha intimidade, fui um assassino
Que merda...
Quando criança, era chamado de bicha
Como se fosse um xingamento
Que coisa mais esquisita
Aprendi que era errado ser sensível
Quanta inocência
Eu tive medo do meu feminino
Eu me tornei um homem reprimido
Meio sem alma, meio adormecido
Um ato fálico, autodestrutivo
No auge e me sentindo deprimido
Me vi traindo por ter me traído
Eu fui covarde, eu fui abusivo
Pensei ser forte, mas eu só fugi...
E caí na pornografia
Essa porra só vicia
Te suga a alma, te esvazia
E quando vê passou o dia
E você pensa que devia
Ter outro corpo, outra pica...
A ansiedade vem e fica
Caralho! Isso não é vida!
Cuida, meu irmão
Do teu emocional
Cuida do que é real
Cuida, meu irmão
Do teu emocional
Cuida do que é real
Meu pai foi minha referência de homem forte
Trabalhador, generoso, decidido
Mas ele sempre teve dificuldade de falar
O pai do meu pai também não soube se expressar
Por esses homens é preciso chorar
E perdoar...
Essa dor guardada
Até agora, enquanto escrevo
Me assombra se o que eu digo é o que eu devo
Um eco de medo
O que será que vão dizer?
O que será que vão pensar?
A rejeição ensina cedo:
Seja bem bonzinho ou então vão te cancelar
Que complexo é esse? Mamãe, é você?!
Me iludi nessa imagem, tentei me esconder
Eu só posso ser esse Tiago
Cheio de virtude, cheio de estrago
Que afago crescer, aceitar
Ai, ai...
Esse homem macho, machucado
Esse homem violento, homem violado
Homem sem amor, homem mal amado
Precisamos nos responsabilizar, meus amigos
A gente cria um mundo extremo e opressivo
Diz aí, se não estamos todos loucos
Por um abraço
Que cansaço
Cuidado com o excesso de orgulho
Cuidado com o complexo de superioridade, mas
Cuidado com desculpa pra tudo
Cuidado com viver na eterna infantilidade
Cuidado com padrões radicais
Cuidado com absurdos normais
Cuidado com olhar só pro céu
E fechar o olho pro inferno que a gente mesmo é capaz
Cuida, meu irmão
Do teu emocional
Cuida do que é real
Cuida, meu irmão
Do teu emocional
Cuida do que é real
Minha alma é profunda e se a foga no raso
Minha alma é profunda e se afoga no raso
Minha alma é profunda e se afoga no raso
Eu fico zonzo
Fico triste
Fico pouco
Fico escroto
Eu sigo à risca
O que é ser homem
Isso não existe
A vida insiste
O tempo todo
Que eu repense
O que é ser homem?
O que é ser homem?
O que é ser homem?
O que é ser homem?
O que é ser homem?
Há tantos e tantos
E tantos e tantos e tantos
Possíveis homens
Homem real e não ideal
Ser homem por querer se aprender, todo dia
Dominar a si mesmo
Apesar de qualquer fobia: respeito
Tem que ter peito
Tem que ter cu pra amar direito
Vou dizer que não?
Esperando sentado por salvação?
Conexão, empatia, verdade
Divino propósito: responsabilidade
Deitar a cabeça no travesseiro e sentir paz
Por ter vivido um dia honesto
Ah...
Ser homem exige muito mais do que coragem
Muito mais do que masculinidade
Ser homem exige escolha, meu irmão
E aí?”